sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Política e Religião: as religiões são conservadoras? (*)



Naqueles tempos os fariseus prepararam uma emboscada para comprometer Jesus. César cobrava impostos abusivos, o povo era oprimido pelo império romano e essa era uma questão muito sensível. Depois de dirigir alguns falsos elogios a Jesus, os fariseus jogaram a armadilha: É permitido ou não pagar o imposto a Cesar? Um verdadeiro beco sem saída para qualquer cidadão comum. Se ele respondesse que sim, seria um verdadeiro conservador, aliado com o status quo, com as elites poderosas, nos dias atuais seria classificado de direitista ou comedor de coxinha. Porém, se Jesus condenasse o pagamento dos impostos ele certamente seria considerado um liberal revolucionário, um agitador público, um perigo para o império, atualmente seria chamado de comedor de mortadela e esquerdopata.
Mas Jesus não era um cidadão comum. Independentemente de suas crenças ou descrenças, amigo leitor, um homem que é capaz de dividir a história em duas, pode ser qualquer coisa, menos uma pessoa medíocre. Atentemos para a excecionalidade da resposta de Jesus, para mim, uma das passagens mais geniais do Evangelho. Jesus pediu uma das moedas que se paga o imposto e perguntou: “De quem é essa imagem e essa inscrição? De Cesar, responderam-lhe. Disse-lhes então Jesus: Dai, pois, a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21).
Esse episódio passa despercebido por muitos, porém ele é a essência desta reflexão. Muitas pessoas afirmam com convicção que as religiões são conservadoras e mesmo entre aqueles que fazem parte delas, existem os que se questionam a esse respeito, principalmente quando seus confrades e líderes religiosos tomam posturas conservadoras. Recentemente, com o acirramento da política nacional, observamos no movimento espírita como em outros movimentos religiosos os mais diversos posicionamentos políticos e trocas de acusações.
Existe um entendimento comum, sobretudo no campo das ciências humanas, de que não existem posicionamentos neutros. Todas as nossas ações e opiniões são ideologicamente motivadas, mesmo quando não nos damos conta disso. Nenhuma análise ou prática social é neutra, considerando que trazemos uma carga cultural, condicionamentos e educação, que são filtros que definem a realidade. Acredito nisso, mas não a ponto de achar que nenhuma objetividade é possível.
O problema é que no campo político a “não neutralidade” é acompanhada de uma visão dicotômica do mundo dividido entre esquerda e direita, liberais e conservadores. Desse modo, não podendo ser neutro, forçosamente você é contra ou favor ao Status quo. Não existe meio termo. Sob essa perspectiva Jesus seria apenas um conservador que saiu pela tangente, mas, em minha opinião essa é uma interpretação pobre e superficial. Jesus não foi neutro, não foi de esquerda e nem de direita, ele representa uma via diferente, um paradigma completamente diverso daquele que orienta as concepções políticas humanas e quem enxerga apenas essas concepções, não será capaz de entender a resposta do nazareno.
De fato não há o que discutir com quem acha que o mundo se resume a dicotomia "liberal versus conservador", para esses as religiões e mesmo qualquer forma de espiritualidade são conservadoras e ponto final. Porém existe uma via alternativa para interpretar o sentido da experiência humana, trata-se de uma via tão antiga quanto a própria humanidade, a via espiritualista. Mesmo alguém que não tenha nenhuma religiosidade ou crença, poderá reconhecer que se trata de outro paradigma que difere essencialmente da política.
As doutrinas políticas, sejam elas quais forem, baseiam-se todas na perspectiva materialista. Estão preocupadas com as questões objetivas do mundo, da sobrevivência, da economia, do poder, das leis e relações entre os povos e nações. Partem do individual em direção ao coletivo sendo esse último o seu objetivo final. As esperanças de mudanças planejadas para a sociedade são depositadas em grandes sistemas que criam as condições para que os indivíduos se desenvolvam em todos os aspectos, os indivíduos, por sua vez, são produtos do meio ou, do ponto de vista de algumas doutrinas científicas, produtos de suas determinações genéticas. Aqui o indivíduo é mero efeito das determinantes sociais e biológicas que são em última instância, a causa primeira e material de nossa realidade, por isso, convêm focar nelas.
O espiritualismo parte da experiência coletiva em direção ao interior, à individualidade (diferente do individualismo), ao autoconhecimento, ao Self, à reinterpretação de nossas experiências emocionais e sentimentos, à ressignificação subjetiva do sentido de nossa existência. No oriente, em muitas doutrinas inicia-se com um mestre, mas o auge é a experiência individual do nirvana, da iluminação. No ocidente inicia-se coletivamente no ambiente social de uma religião, mas o objetivo final é a experiência espiritual que não é objetiva e só pode ser sentida pelo indivíduo. O parâmetro é ele mesmo. É o caminho inverso da política. Jesus afirmava: “meu reino não é deste mundo” (João 18:36). As esperanças de mudanças planejadas para a sociedade são depositadas no indivíduo que é dotado de vontade e livre-arbítrio, as influências sociais e biológicas existem e são importantes, mas, de modo geral elas não nos privam da capacidade de vencê-las, superando nossas tendências, exercendo nossa criatividade. Vencer nossos impulsos, condicionamentos e influências é a essência da simbólica luta do bem contra o mal, do espírito contra a ilusão da matéria.
Jesus se posiciona diante dos fariseus demonstrando esse caminho. Trata-se de outro paradigma, outro sistema de conhecimento que não se enquadra na dicotômica divisão de mundo da política. Tentar enquadrar a espiritualidade como liberal ou conservadora no sentido político dessas expressões é como tentar forçar o azul a se decidir entre ser preto ou branco. É exatamente isso o que fazem alguns ao analisarem as pautas defendidas pelas religiões que podem ser classificadas como liberais ou conservadoras. Tenho amigos tão convictos que o Espiritismo é de esquerda quanto outros tantos que acreditam que ele é de direita.
Pautas como aborto, pena de morte e eutanásia geralmente são combatidas pelas religiões e por isso alguns as consideram conservadoras. Mas, justiça social, caridade, e defesa dos mais fracos são também defendidas pelas religiões e essas são pautas mais comuns aos liberais. Mas da mesma forma que um animal não é uma vaca apenas porque tem dois chifres, as religiões não são de esquerda ou direita apenas porque algumas pautas coincidem com um ou outro segmento. Essencialmente política e religião se diferenciam porque baseiam-se em paradigmas opostos, o materialismo e o espiritualismo, e desafio qualquer um a provar o contrário.
Essas afirmações se referem aos fundamentos da maioria das religiões ou da espiritualidade em si mesma o que é muito diferente da prática social das instituições religiosas, essa última muito mutável e variada. É verdade que encontramos nas instituições religiosas posturas liberais e até revolucionárias, principalmente dos grandes fundadores como Jesus, Paulo, Martinho Lutero, Allan Kardec, Buda e outros. Contestar, gerar rupturas, pregar mudanças, criar novos sistemas, estar do lado dos mais fracos e desfavorecidos não é exatamente uma postura conservadora. Mesmo atualmente, encontramos dentro das religiões movimentos liberais e progressistas. Agora mesmo temos um papa liberal enfrentando o conservadorismo da sua igreja, porém, na maioria das vezes os religiosos e seus líderes são conservadores e nesse sentido os críticos têm razão ao dizer que as religiões são conservadoras. Não raras vezes, na história e na atualidade, as instituições religiosas colaboraram com a opressão, exploração, guerra, extermínio, racismo, misoginia, homofobia etc., exterminaram milhares de pessoas ou silenciaram diante de extermínios. Muitas dessas instituições tornaram-se antes de tudo políticas, focadas nas ambições do mundo, apenas travestidas de religiosas.
No entanto esse fenômeno é produto da ignorância no mais amplo sentido, ignorância política, social e sobre os fundamentos da própria religião que professamos. Por causa disso, a maioria dos religiosos é massa de manobra no que se refere a posicionamentos políticos partidários. Diante da pergunta dos fariseus, sobre a quem se deve pagar o tributo, conforme a propensão individual, bradam: “Viva a Cesar!” ou “Morte a Cesar!” É perfeitamente lícito escolher, enquanto cidadão, entre um ou outro ponto de vista político, mas não se pode esperar que as religiões ofereçam formação político-partidária aos cidadãos, porque essa é uma função das escolas, das famílias, da sociedade organizada, mas não das religiões.
A falta de educação e formação política de uma nação reflete-se em todos os ambientes sociais em que o cidadão faz parte e não apenas nas instituições religiosas. Reflete-se na reunião de condomínio, na associação de bairro, nos estádios de futebol, no comportamento dos nossos filhos na escola. As instituições religiosas, como quaisquer outras, reproduzem e fortalecem as práticas sociais vigentes da sociedade em que está inserida, a tal ponto que seus seguidores constantemente fazem o contrário do que prega os princípios de sua religião. Ou seja, o conservadorismo predominante nas instituições religiosas é reflexo do contexto social e não porque as religiões tornam as pessoas conservadoras.
A espiritualidade ou religiosidade orientada pelos princípios transcendentais que estão na origem das grandes religiões, algo diferente das instituições e rótulos religiosos, representa o caminho para si e para o próximo que é uma extensão de mim mesmo (amar o próximo como a si mesmo) é uma vacina contra o ódio, o egoísmo, o orgulho e a vaidade. É lamentável ouvir líderes religiosos gritando “Morte a Cesar! ou Viva a Cesar!”, enquanto deveriam dar a Cesar o que é de Cesar. O papel das religiões é transformar a sociedade a partir da transformação pessoal do indivíduo, porque ele é a causa de todos os bens ou males da sociedade. Quem atinge a transcendência do amor e da integração com o próximo não se corromperá com o ódio, a corrupção e a intolerância. Independentemente de suas posições político-partidárias, sabe que elas são secundárias, porque não importa quão bom seja o seu partido ou posição política, ele será irremediavelmente corrompido e degradado pelo ódio e pelo egoísmo que ainda exista em nossos corações.
Todos precisamos de educação e formação histórica e política para atuarmos conscientemente como cidadãos. Porém isso não é suficiente. Caráter, abnegação, compaixão, empatia não são qualidades que se aprende na escola ou nos livros de história, mas na experiência humana orientada por valores transcendentes e não materialistas. As doutrinas políticas são deficientes nesse sentido, nada trazem à alma do indivíduo, porque enxergam o indivíduo como efeito e não como causa. Ao mesmo tempo, as religiões enquanto instituições da sociedade civil, necessitam que a política cumpra com a sua função oferecendo um meio social propenso ao desenvolvimento das qualidade humanas. A política lavra o solo, mas é a espiritualidade que tem a semente.
Acredito que em uma sociedade saudável, política e religião devem coexistir porque todos nós somos ao mesmo tempo indivíduos e cidadãos. Se, enquanto espiritualista, acredito que o indivíduo é a causa, não desprezo, porém as influências do meio social sobre a sua formação. São duas dimensões diferentes, dois sistemas de conhecimento, de abordagens sobre a realidade. Somos espíritos, mas estamos na matéria, disso não podemos esquecer, mas tão pouco podemos esperar da política ou da religião aquilo que elas não podem dar, porque não é a sua respectiva função.
Amigos espíritas e religiosos, unamos nossas forças nos ideais puros do Cristo consolador e trabalhemos para que as instituições religiosas sejam ambientes que ocupem-se de promover a transcendência humana, que ocupem-se de dar o Deus o que é de Deus e deixemos à política dar a Cesar o que é de Cesar. Dessa forma, mais que cidadãos seremos seres humanos que sabem optar politicamente e respeitar as diferenças.



Pergunta: Mas as religiões não são também conservadoras pelo fato de terem sistemas de referências fixos como livros sagrados, doutrinas, postulados e dogmas que permanecem inalteráveis? Ao defender a manutenção dessa base inalterada, não somos de certa forma conservadores ou, nesse caso, fundamentalistas? As ciências, por outro lado, parecem ter mecanismos de autocorreção de seus postulados e alteram-se constantemente conforme as novas evidências. As ciências, de forma geral, seriam mais liberais e revolucionárias? Acredito que por isso foi necessário que elas se dividissem da religião para que pudessem progredir.

Esse entendimento comum parece fazer todo sentido, porém isso não é tão preciso. Primeiro não nos esqueçamos que a ciência possui seus dogmas e premissas inalteráveis. O materialismo, por exemplo, é uma premissa adotada arbitrariamente pela ciência. Por mais que a ciência avance e altere seus postulados os fundamentos da matemática prosseguem os mesmos, aliás, são eles permitem que a ciência avance. Nenhum sistema de conhecimento pode prescindir de uma base sólida, no momento que essa base se rompe, significa o fim daquele sistema e o início de um novo, uma revolução paradigmática como falava Thomas Kuhn. Mesmo dentro da ciência encontramos revolucionários e reacionários, enquanto uns tentam construir novos paradigmas, outros tentam defender as bases estabelecidas, mas essa é uma dinâmica salutar para qualquer sistema assim como para a religião.
A dinâmica de evolução das religiões é distinta, mas ela também é dotada de mecanismos de autocorreção, porém, como a religião é um sistema muito mais antigo que a ciência, ela possui tempo, ritmo e dinâmica muito diferentes. Assim como na ciência a religião tem suas rupturas e revoluções que resultam não apenas no surgimento de novas religiões como também na mudança interpretativa de seus postulados e essa última característica é muito especifica da religião não podendo ser adotada pela ciência.
A ciência possui bases de referência objetivas, que não deixam margem à interpretação. Quando há uma revolução na ciência isso significa a ruptura dessas bases, como a física quântica que possui bases diferentes da física newtoniana. Porém, os fundamentos da maioria das religiões são subjetivos, possuem uma base de conhecimento tradicional e ancestral como parábolas, imagens, símbolos, etc. É possível que uma religião sofra uma completa reinterpretação dos significados de seus símbolos, mesmo que esses elementos simbólicos permaneçam os mesmos. Ou seja, as parábolas de Jesus ou as sutras do Tao Te Ching podem ter interpretações completamente diferentes dependendo da época, e mesmo atualmente existem vários sistemas interpretativos que dão origem as mais de 30 mil religiões cristãs que existem pelo mundo.
Essa “revolução da interpretação” não é vista pelos críticos das religiões, porque ao observarem de fora, de fato, as bases da religião permanecem as mesmas, não se dando conta que os símbolos são sistemas vivos e dinâmicos. Os arquétipos das religiões interagem com a época e a realidade em que estão inseridos, mas enquanto arquétipos eles existem na interação com a subjetividade do indivíduo que dá ao símbolo um sentido único e individual que também evolui na dinâmica do seu autoconhecimento.
Considerando que o caminho da espiritualidade é o “caminho para dentro”, ela não se ocupa da transformação direta do mundo material como faz a política, a ciência e a tecnologia. A espiritualidade transforma o mundo intermediada pela transformação do indivíduo. Esse, ao ser transformado pela espiritualidade, opera na sociedade através da política e da ciência e diga-se de passagem, transforma o mundo mesmo através das estruturas institucionais religiosas, que não são outra coisa senão estruturas políticas.
Esse “caminho para dentro”, essa “individuação” representa uma verdadeira revolução do sentido existencial, dos valores, hábitos e posturas do indivíduo, que através dessa transformação opera na sociedade, como Saulo de Tarso convertido em Paulo na estrada de Damasco em seu encontro com a sua transcendência através de Jesus, o que representou uma revolução tão grande que refletiu-se na história do mundo.
Enfim, as religiões transformam-se de diversas formas, porém de maneira bem diferente da ciência e da política. Suas bases de referência podem ser alteradas através dos cismas e surgimento de novas religiões, mas essas mesmas bases podem ser constantemente reinterpretadas porque estão repletas de conteúdos simbólicos que são interpretativos e, por último, a religião deve ser olhada pela sua capacidade de mudar o indivíduo, porque esse é seu objetivo maior. A aparente inalterabilidade da "forma exterior" da religião, frequentemente oculta a natureza viva e dinâmica de seu conteúdo. Se não enxergarmos o tempo da religião que é diferente do tempo da ciência, se não enxergarmos o objetivo que é a individuação, se olharmos apenas sob o ponto de vista das doutrinas materialistas, enxergaremos apenas estagnação e conservadorismo na espiritualidade e nas religiões.
Uma particularidade é o Espiritismo, que além de ter uma base rica em símbolos que é o cristianismo, procura incorporar os mecanismos de autocorreção da ciência, evoluindo mais rapidamente sobre suas bases do que a maioria das religiões tradicionais. De fato, como ciência e religião são sistemas com paradigmas muito diferentes, foi útil e necessária a separação que houve entre elas no passado, porém, avançamos para um entendimento que permite reintegrá-las, papel bem cumprido pelo Espiritismo, que é uma doutrina revolucionária no âmbito das religiões, mas isso é tema de outra discussão.

(*) Esclarecendo alguns termos usados no artigo

Liberal e Conservador – Aqui adotamos o entendimento comum sobre esses termos, amplamente difundido e associado à política em seu sentido partidário, onde, em nosso contexto nacional o liberalismo progressista está associado à chama esquerda e o conservadorismo está associado à chamada direita. A adoção dessas expressões é feita de forma consciente pelo objetivo de criticar a tentativa de enquadrar as religiões em uma simples e dualista perspectiva político-partidária.
Política – no sentido empregado no texto refiro-me a política no sentido partidário, porém, em alguns momentos o significado é mais geral e aristotélico, por exemplo, quando digo que a sociedade é pobre de formação política e histórica. Ao afirmar que à religião não compete a formação política, isso é válido para a política partidária, porém, em sentido mais amplo é inegável que as religiões possuem posicionamentos políticos estabelecidos em seus fundamentos como foi mencionado, por exemplo, sobre o aborto, pena de morte, justiça e caridade.
Religião – O entendimento comum mescla a espiritualidade do indivíduo (1), os princípios que orientam um segmento religioso (2) e a dinâmica social das instituições religiosas (3). Em vários momentos procuro distinguir essas três perspectivas. A conclusão é que a vivência da espiritualidade íntima, subjetiva e transcendente nunca é conservadora porque ela só existe quando há transformação substancial da perspectiva do indivíduo (1). Do ponto de vista dos princípios e fundamentos que orientam a maioria das religiões, geralmente eles são progressistas em sua origem, porque as religiões surgem de alguma ruptura ou cisma ou nova experiência e interpretação. Após esse período de formação, esses princípios parecem inamovíveis, o que dá um aspecto de conservador e dogmático às religiões, mas essa é uma interpretação enganosa, conforme explico no artigo (2). Por fim, as instituições religiosas são ambientes sociais onde disputam as perspectivas conservadoras e liberais e, sem dúvida, no passado como atualmente predomina a perspectiva conservadora. Naturalmente essa é apenas uma separação arbitrária com a finalidade didática de facilitar o entendimento sobre esse panorama complexo (3).


sexta-feira, 27 de julho de 2018

O Trabalhador Espírita Perante a Política Partidária

Ao atravessar os períodos eleitorais, sempre me deparo com as mais diversas situações relacionadas com o tema deste texto. Preocupa-me a postura de alguns trabalhadores espíritas durante o período que antecede ou sucede as eleições. Entendendo as diversas situações em torno do tema política e Espiritismo, foi necessário delimitar o assunto deste texto, pois é sobre esse ponto que temos nos deparado com algumas situações arriscadas e uma série de posicionamentos que acredito que sejam equivocados se considerarmos a finalidade e os princípios do Espiritismo.

É quase consenso que o Espiritismo é uma doutrina moral e não política, que não assume posturas partidárias nem permite que se leve às tribunas espíritas questões referentes à política do mundo. Quando afirmo que Espiritismo e política não se misturam, refiro-me a aspectos específicos da política polarizada nas questões partidárias e eleitorais, porém, de maneira geral, no conceito aristotélico de política que é indissociável da moral e da virtude, toda ação social é também uma ação política. Qualquer ato que afete a coletividade, mesmo que seja emitir uma opinião, é, em sentido filosófico, uma ação política. Nesse sentido, pode-se dizer que o Espiritismo possui posicionamentos políticos, por exemplo, sobre o aborto, a pena de morte e a eutanásia ou mesmo quando os centros espíritas realizam alguma campanha ou ação social, nesse aspecto as instituições espíritas não deixam de ser também políticas.

Por fim, ser cidadão que atua politicamente e de forma consciente contribuindo para uma sociedade democrática não se resume ao voto, que é apenas uma das expressões da democracia, até questionável por alguns pensadores no que se refere a sua representatividade. A democracia nos faculta também o direito de escolher ou não os nossos representantes e o fato de alguém decidir não escolher um representante durante o processo eleitoral, não significa que ele não seja um cidadão atuante no seu cotidiano, ciente dos seus direitos e dos seus deveres e que trabalha pelo bem comum. Às vezes, é mais fácil ir às urnas e cruzar os braços durante quatro anos do que fazer valer seus direitos no dia a dia.

Revisada essa diferença entre esses dois significados ou dimensões atribuídas à política, passemos então as posturas e comportamentos que entendo serem destoantes com os princípios espíritas, sobretudo para aqueles que se encontram a frente das lides de trabalho doutrinário. Mas, para tanto, considerando a irrelevância de minha opinião, busquei a ajuda do espírito André Luiz que no livro Conduta Espírita trouxe-nos uma mensagem de conteúdo atualíssimo, intitulada “Nos Embates Políticos”, psicografia de Chico Xavier, da qual destacamos alguns trechos que pontuarão este texto.  Diz-nos o autor:

“Situar em posição clara e definida as aspirações sociais e os ideais espíritas cristãos, sem confundir os interesses de César com os deveres para com o Senhor”.
“Só o Espírito possui eternidade”.
(...) “O Espiritismo não pactua com interesses puramente terrenos”.

A citação de abertura corrobora com o quê já dissemos. O Espiritismo possui suas aspirações sociais e seus ideais que, em sentido mais amplo, são posicionamentos políticos, mas não confundamos os interesses do mundo com os interesses espirituais. Não é fácil enxergar sempre a separação entre esses interesses e constantemente se perde a linha que separa as duas coisas. Enquanto cidadãos, podemos cuidar dos nossos interesses mundanos, mas não devemos querer que o Espiritismo se ocupe de interesses particulares ou que representam a expressão de determinados grupos ou partidos.

“Distanciar-se do partidarismo extremado”.
“Paixão em campo, sombra em torno”.

Por que André Luiz nos faz essa recomendação? Sabem os espíritos da atmosfera psíquica que paira em torno dos embates politico partidários humanos. Eles têm noção de como em um mundo imperfeito predominam os interesses mesquinhos apesar da nobreza de caráter de alguns homens públicos, mas esses se encontram inevitavelmente cercados por outros tantos mal intencionados. Certamente devemos trabalhar para modificar esse panorama, porém, a “psicosfera” que ainda enleia esse terreno é ambiente fértil para o desequilíbrio, para o embate desarrazoado cercado de calúnias, difamações, fofocas, ressentimentos, vinganças e armadilhas. Observe que André Luiz não condena que se tome posicionamento partidário, mas o extremismo é porta para o desequilíbrio. Mas como saber se estamos sendo extremistas? Basta verificar como somos afetados ao lidar com essas questões. Se você alimenta raiva ou ódio por determinado candidato ou afastou-se de alguém de seu convívio, ou mesmo passou a desconsidera-lo por não compartilhar de seus posicionamentos ou por militar em outro partido, então você já adentrou nas fronteiras do extremismo, pois é o sentimento que move nossas ações que as qualificam ou desqualificam. Sobre isso André Luiz ainda nos diz:

“Por nenhum pretexto, condenar aqueles que se acham investidos com responsabilidades administrativas de interesse público, mas sim orar em favor deles, a fim de que se desincumbam satisfatoriamente dos compromissos assumidos”.
“Para que o bem se faça, é preciso que o auxílio da prece se contraponha ao látego da crítica”.

Quem resvala para o partidarismo extremado ou mesmo posicionamentos políticos acerbados, ainda que não milite em um partido político, está sujeito a se emaranhar nessa teia de desequilíbrio psíquico e espiritual. Quem por algum motivo tiver que adentrar por essas terras, que resguarde a sua sobriedade espiritual evitando que o acirramento de ideias o afaste dos princípios espíritas e cristãos de amor ao próximo.

“Em nenhuma oportunidade, transformar a tribuna espírita em palanque de propaganda política, nem mesmo com sutilezas comovedoras em nome da caridade”.
“O despistamento favorece a dominação do mal”.
(...) “Impedir palestras e discussões de ordem política nas sedes das instituições doutrinárias, não olvidando que o serviço de evangelização é tarefa essencial”.

Casa espírita não é lugar de campanha política e isso raramente acontece abertamente, mas, às vezes, isso acontece de maneira mais sutil, por isso que André alerta que o despistamento (ou distração, invigilância) favorece a dominação do mal. Devemos estar alertas para as estratégias sutis da política de imiscuir-se no meio espírita escamoteada de questões doutrinárias. Não é raro observar alguns espíritas que tentam persuadir seus companheiros de doutrina a votar ou não votar em determinado candidato porque ele é contra ou a favor de algum postulado espírita. Eu já fui abordado com a seguinte colocação em uma lista de discussão espírita: – quem é espírita não pode votar em candidato Fulano porque ele é a favor do aborto, ou não vota em candidato Beltrano porque ele é corrupto, etc. Sim, é certo que não devemos apoiar o aborto ou a corrupção, mas a escolha do candidato é antes de tudo uma questão de consciência pessoal. Não se deve utilizar o apelo religioso quando podem ser outros os interesses que se encontram por detrás dessa argumentação. E mesmo que o interesse na argumentação seja sincero por parte do interlocutor, é preciso ter certeza que a informação é verídica, se ela não é apenas um boato ou mesmo se foi manipulada ou distorcida por interesses eleitorais, algo muito comum nesse meio.

Os mais renomados divulgadores do Espiritismo sabem e conhecem muitas obras ditas espíritas com graves erros doutrinários, inverdades e que prestam um desserviço a doutrina, porém, ao invés de enumerar essas obras, esses palestrantes apenas alertam que elas existem e estimulam o estudo das obras básicas de Allan Kardec para que cada um, através de seu próprio conhecimento e juízo crítico, possa identificar e repelir essas obras. O Espiritismo é uma doutrina que preza pela liberdade individual. Da mesma forma, no campo político, não faria sentido que os trabalhadores espíritas nomeassem os candidatos em quem se deve votar. Quando caímos no erro de dizer às pessoas o que elas devem fazer, criamos um séquito de fieis fanáticos e não de adeptos conscientes. Podemos achar que estamos agindo pelo interesse da doutrina quando denunciamos o nome de um candidato, mas na verdade estamos sendo utilizados por interesses externos. Por isso André Luiz ainda nos diz:

“Repelir acordos políticos que, com o empenho da consciência individual, pretextem defender os princípios doutrinários ou aliciar prestígio social para a Doutrina, em troca de votos ou solidariedade a partidos e candidatos”.

Essa citação possui outras facetas, uma delas é a de candidatos que prometem ajudar a causas espíritas em troca de apoio eleitoral. Alguns chegam a oferecer benefícios materiais como um terreno para a construção do Centro Espírita ou mesmo lutar contra a eutanásia e a pena de morte, outros pedem para dar um recadinho no fim da reunião, deixar alguns santinhos de campanha ou quem sabe pintar sua propaganda no muro do centro espírita. Lembremos que a doutrina enquanto instituição não tem representantes no campo da política. Somos livres para fazer nossas escolhas de maneira crítica e consciente, aliás, devemos mesmo escolher nossos candidatos, mas muito cuidado quando o nome do Espiritismo está em jogo.

“Cumprir os deveres de cidadão e eleitor, escolhendo os candidatos aos postos eletivos, segundo os ditames da própria consciência, sem, contudo, enlear-se nas malhas do fanatismo de grei”.
“O discernimento é caminho para o acerto”.
“A rigor, não há representantes oficiais do Espiritismo em setor algum da política humana”.

André alerta para o discernimento e é a falta dele que resulta numa outra faceta que é a de pessoas que se encontram no meio espírita fazendo propaganda sutil para candidatos. Mais uma vez passamos a palavra para ele:

“Não comerciar com o voto dos companheiros de Ideal, sobre quem a sua palavra ou cooperação possam exercer alguma influência”.
“A fé nunca será produto para o mercado humano” (grifo nosso).

Sempre nos deparamos com aquela campanha insistente de pé de ouvido, ou algum companheiro de casa espírita que nos visita em casa apenas para solenemente pedir votos, a situação é mais grave quando esse pedinte é um trabalhador que representa a casa espírita. Os que agem dessa forma no meio espírita, não se dão conta que estão sendo mais políticos do que espíritas, perderam o discernimento que André Luiz chama tanto a atenção, entraram no terreno pantanoso do partidarismo extremado podendo resvalar para a fascinação. Entre esses, encontro muitos que se sentem convictos de que estão prestando um serviço à humanidade e ao Espiritismo. Usam de palavras melífluas, de linguajar espírita, falam de lei de causa e efeito, de responsabilidade do voto, de consciência cristã, quando na verdade tudo desemboca em quem se deve ou não se deve votar. Podem achar que não, mas estão a serviço dos interesses mundanos e não espirituais, quando não, podem servir de instrumentos para entidades espirituais que querem plantar o germe da discórdia visando comprometer a ação do bem, desfazendo os esforços pela união e pela paz em nosso movimento.

Outra situação delicada é o fato de o trabalhador espírita declarar publicamente o seu voto ou preferência partidária, o que certamente é um direito seu enquanto cidadão, mas, chamamos atenção, sobretudo para aqueles que exercem influencia sobre o movimento espírita, conferencistas, médiuns, líderes, presidentes de instituições, etc. Sugiro reler a última citação de André Luiz que fiz acima.

Estejamos cientes da responsabilidade que temos nas mãos. Algumas pessoas tem sua imagem tão associada à Doutrina Espírita, possuem uma folha de serviços tão relevante, que melhor seria não declarar publicamente seu posicionamento partidário, a não ser entre aqueles que lhe são íntimos. Se estivermos trabalhando a serviço de Jesus no intuito de socorrer o próximo, é conveniente evitar temas sobre os quais pairem uma atmosfera de discórdia. Ao falar em público, nos meios de comunicação de massa, devemos enquanto trabalhadores espíritas resguardar-nos de polêmicas que não dizem respeito ao Espiritismo e que desagregam ao invés de unir as pessoas.

Isso não se trata de ser hipócrita ou dissimular, mas de saber que cada coisa tem seu espaço específico e que nossa imprudência pode comprometer o serviço de divulgação do bem. Quem trabalha em benefício da edificação da humanidade deve procurar os caminhos que agreguem e que gerem laços de confiança e de afeto. Lembremos que aqui estamos tratando do campo do trabalho espírita que não é apenas a casa espírita, mas o ciclo de convivência entre os trabalhadores. Já vi pessoas esperarem apenas cruzar para fora do muro do centro espírita para manifestar entre seus pares todo tipo de opinião polêmica, partidarista ou sectária, sem se dar conta que apesar de estarem fora do centro espírita, suas opiniões apressadas e irrefletidas vão repercutir sobre as relações pessoais no grupo e consequentemente nos trabalhos na casa espírita. Já vi diversas inimizades, quiproquós, cisões e até fechamento de trabalhos por consequência de desentendimentos políticos entre trabalhadores.

Existe uma situação nos dias atuais que não existia quando André Luiz escreveu essa mensagem. Naquela época não existiam as mídias sociais, mas certamente nos dias atuais ele acrescentaria uma mensagem à parte sobre como conduzir-se nesses espaços de maneira condizente com a moral espírita e cristã, devido ao impacto que pode provocar qualquer postagem publicada nesses meios. Todas as situações acima discutidas aplicam-se as redes sociais. Uma postagem numa rede social pode ter um alcance muito maior do que quando pronunciada de uma tribuna espírita, com o agravo de que nesse meio de comunicação nem sempre conseguimos entender e ser entendidos claramente. Imagine-se chegando a uma praça pública e gritando abertamente as suas convicções, qualquer pessoa se sente no mínimo um pouco constrangida de fazê-lo, agora multiplique essa situação mil vezes e você terá algo próximo do que representam as mídias sociais, mas nem sempre temos consciência disso porque temos a ilusão de que estamos separados das pessoas, atrás de uma tela, no conforto de nossos lares.

As postagens nas mídias sociais são perigosas porque facilmente são mal interpretadas sem nos dar a oportunidade de esclarecer nosso real pensamento. Diante de algum deslize, os lobos atacam ferozmente dilacerando a imagem de quem não vigiou bem as suas próprias palavras. Nas redes sociais a comunicação feita de maneira fria e distante, virtualizada pela máquina, é propicia a desinibição e manifestação sem freio moral. Não é a toa que esses espaços tornam-se verdadeiras catarses coletivas onde se manifesta todo tipo de desequilíbrio. Pelo menos esse é o panorama atual de como esses instrumentos têm sido predominantemente utilizados e também representa o padrão vibratório desses espaços, o que exige de nós redobrada vigilância ao perambular por ali.

O seu perfil numa rede social representa aquilo que você diz de você mesmo em praça pública, como se estivesse berrando aos quatro cantos do mundo. É preciso refletir a que tipo de ideias queremos estar associados e as consequências de expor essas ideias. É preciso saber distinguir o que nos interessa declarar em público ou manter no âmbito privado. Cada um sabe do seu papel na sociedade e de sua atuação no campo espírita e como lhe convém declarar publicamente alguns posicionamentos. A minha opinião é a de que é muito imprudente ou no mínimo de mau gosto observar um perfil público de um trabalhador espírita onde alternam-se postagens espíritas e mensagens carregadas de idealismos partidários, quando não, publicidade política aberta e declarada. A que queremos associar a nossa imagem pública? A religião ou a política partidária? Estou falando de imagem pública em redes sociais, porque não dá pra ter duas imagens públicas, ou manter uma imagem pública manifestando interesses conflitantes sem que isso resulte em toda sorte de problemas e sob a consequência de prejudicar os dois interesses e, mais ainda, prejudicar a si mesmo. Além disso, existe aqui um dilema ético que é usar a força e o reconhecimento que a sua imagem pública adquiriu à custa da religião, para exercer influencia sobre outra área (política), sobre a qual não lhe foi concedida autoridade. As pessoas que se tornam proeminentes e reconhecidas pelo Espiritismo têm em suas mãos um poder de influência que é um instrumento que lhes foi dado para esse fim. Se usarem esse poder com outra finalidade, estão desvirtuando-o e são responsáveis por isso.

Da mesma forma, quem decidir-se por seguir a carreira política contribuindo para dignificar esse espaço deve estar atento para não fazer uso de sua imagem como espírita para angariar votos, quem assim procedesse incorreria em grave erro. Nesse caso é melhor restringir as suas convicções religiosas ao seu ciclo de convívio íntimo, não negando-as, mas não utilizando-as a soldo dos interesses mundanos. Se a imagem pública de alguém já está associada à política, esse deve ser comedido ao manifestar-se publicamente sobre religião.

As mídias sociais nos permitem rapidamente repassar informações postadas por outras pessoas o que pode ser um problema se estamos preocupados em ser verdadeiros e éticos. Temos a ilusão de que não somos responsáveis por repassar uma informação que não é de nossa autoria, o famoso pensamento “– eu não sei se é verdade, mas andam dizendo por aí...” significa assumir o compromisso por contribuir com a calúnia e a depredação pública de reputações. Se nos sentimos na obrigação moral de denunciar a hipocrisia, se nos achamos arautos da honestidade e da retidão, então nos esforcemos um pouco mais para verificar a veracidade de algumas informações antes de repassá-las, na dúvida é sempre melhor abster-se. A maledicência é uma serpente peçonhenta e por fim, não nos esqueçamos do exemplo de Jesus que não foi conivente com o erro, porém não apedrejou a pecadora. Mas não basta não atirar a pedra, pois dar a pedra ao apedrejador nos faz tão culpados quanto o algoz.

Quando damos um simples clique e repassamos uma informação, estamos endossando a mesma, dando nosso aval, validando-a através da nossa reputação, afinal, se um trabalhador espírita respeitável repassou a informação, apenas por isso, um grande número de pessoas aceitará imediatamente como verdade. Mesmo sabendo de que cada um decide seguir a quem quer, devendo fazer uso de seu juízo crítico, sabemos também que no atual estado da humanidade as pessoas são facilmente influenciadas, sendo assim, somos responsáveis pelos frutos das sementes que plantamos.

Antes de repassar publicações com denúncias de corrupção, escândalos políticos, denúncias sobre a vida pessoal de políticos ou de qualquer pessoa, não nos esqueçamos da lenda das três peneiras de Sócrates:

“Um homem foi ao encontro de Sócrates levando ao filósofo uma informação que julgava de seu interesse:
- Quero contar-te uma coisa a respeito de um amigo teu!
- Espera um momento – disse Sócrates – Antes de contar-me, quero saber se fizeste passar essa informação pelas três peneiras.
- Três peneiras? Que queres dizer?
- Vamos peneirar aquilo que quer me dizer. Devemos sempre usar as três peneiras. Se não as conheces, presta bem atenção. A primeira é a peneira da VERDADE. Tens certeza de que isso que queres dizer-me é verdade?
- Bem, foi o que ouvi outros contarem. Não sei exatamente se é verdade.
- A segunda peneira é a da BONDADE. Com certeza, deves ter passado a informação pela peneira da bondade. Ou não?
Envergonhado, o homem respondeu:
- Devo confessar que não.
- A terceira peneira é a da UTILIDADE. Pensaste bem se é útil o que vieste falar a respeito do meu amigo?
- Útil? Na verdade, não.
- Então, disse-lhe o sábio, se o que queres contar-me não é verdadeiro, nem bom, nem útil, então é melhor que o guardes apenas para ti”.

Devemos ser sempre a estação terminal de qualquer comentário infeliz. Quando divulgamos irresponsavelmente o mal, nos associamos com a calúnia e a leviandade e podemos, pela lei do retorno, nos tornar vítimas desse mesmo mal. Não poderia terminar essa missiva de outra maneira senão da mesma forma que conclui André Luiz, destacando as palavras do Evangelho de Jesus, esse inesgotável repositório de sabedoria. Essas últimas palavras resumem de maneira magistral o que qualquer um tenha a dizer sobre esse assunto, reflitamos sobre elas:

Nenhum servo pode servir a dois senhores” — Jesus. (LUCAS, 16:13.)

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Por que é tão difícil crer?


  
          Este texto é dedicado a um grupo especial de pessoas que têm vontade de possuir alguma crença espiritualista, mas que não encontraram razões convincentes que fundamentem sua crença. Essas são pessoas questionadoras, mas que não têm preconceitos nem repudiam a ideia de “crer”, porém não encontraram um caminho possível para essa crença. Sobre elas pesa-lhes a descrença, como um fardo de desencanto e pessimismo, ou sentem-se aprisionadas no cárcere do ceticismo.
            Este não é um texto para ateus convictos. Não pretendo convencer àqueles que se acham possuidores da razão, nem tenho a pretensão de solucionar tão difícil dilema. Eu encontrei o meu caminho para a crença sem abdicar da razão, mas antes é preciso também criticar e reconhecer os limites disto que chamamos de “razão”, e dos valores vigentes no atual contexto social. Quem sabe alguém possa encontrar nestas palavras, reflexões que lhes ajudem a rever seus conceitos de fé e ceticismo.
            É preciso refletir primeiramente sobre a forma na qual somos ensinados a questionar as coisas. Todo questionamento é construído sobre um paradigma específico. Um paradigma é um conjunto de idéias e pressupostos que formam uma visão de mundo. Vejamos a figura abaixo:

            Nessa figura um engenheiro hidráulico e um biólogo observam sob suas perspectivas um rio ou córrego. As perguntas que o engenheiro fizer só permitem respostas que refletem o paradigma do engenheiro. O mesmo serve para o biólogo. As perguntas já possuem disfarçadamente uma visão de mundo que impede outro nível de percepção. Não podemos refletir sobre crença e descrença sem antes refletir sobre os valores que nos influenciam e a partir de que ponto de vista estes valores nos leva a formular nossos questionamentos. De outra maneira estaremos em um labirinto sem saída. É como usar um copo d’água para abrir uma fechadura ao invés de uma chave. Se você nunca viu uma chave e tudo que conhece é um copo d’água, vai tentar de alguma maneira abrir a porta com o copo d’água. Vai imaginar todas as possibilidades possíveis, quem sabe vai derramar a água na fechadura, quebrar o copo, tentar muitas posições e esquisitices. Você sabe que existem pessoas que passaram para o outro lado da porta, não consegue imaginar o que pode estar errado, porque você até hoje acreditava que o copo d’água era a solução para todos os problemas, nem sequer imaginava que pudesse existir algo mais no mundo que um copo d’água e nem lhe passa pela cabeça questionar se o copo d’água é o instrumento certo para abrir a porta, afinal, o copo lhe serviu por toda a vida e aparentemente foi capaz de resolver todos os seus problemas passados. Tamanha é a ilusão e confiança que temos no copo d’água que nem sequer enxergamos a chave que está pendurada na nossa frente. Se você não questiona os seus instrumentos de busca pela verdade, provavelmente cairá nesse labirinto, pois muitos instrumentos de busca são limitados ou estão viciados por preconceitos.
         Frequentemente descrentes são pessoas com copos d’água a frente da porta da crença, tentando abri-la inutilmente. Normalmente se cansam e perdem a esperança. Vão embora tristes, acreditando que não há como abrir a porta. Alguns não se acham capazes de abri-la, outros deixam de acreditar que ela se abra. Quanto mais as pessoas estão mergulhadas em um paradigma, mas dificilmente enxergarão esta distorção porque tudo o que vivenciaram em suas vidas foi concebido através daquela visão de mundo. São capazes das mais ousadas peripécias com o copo d’água, de realizar feitos geniais, mas são complemente incapazes de enxergar a chave.
            Existe uma piada que ilustra bem essa situação:
Em um elevador há um ascensorista que se chama João e tem 60 kg e 35 anos, no térreo sobe uma mulher que se chama Maria que tem 65 kg e 40 anos; no primeiro andar sobem dois irmãos que se chamam André e José com 70 e 75 kg e 45 e 50 anos, respectivamente. Então, como se chama o elevador? Diante deste enigma, um matemático pode fazer equações inimagináveis para resolver a solução. Criar um método matemático que nenhum mortal comum seja capaz de entender. Mas a resposta é simples. “O elevador se chama apertando o botão”.
Outra piada que me foi enviada pela internet ilustra bem a situação:
Um paciente vai  num consultório psicológico e diz pro doutor:
 - Toda vez que estou na cama, acho que tem alguém embaixo.
 Aí eu vou embaixo da cama e acho que tem alguém  em cima. Pra baixo, pra cima, pra baixo, pra cima.
Estou ficando maluco!
 - Deixe-me tratar de você durante dois anos, diz  o psicólogo.
 - Venha três vezes por semana, e eu curo este problema.
 - E quanto o senhor cobra? - pergunta o paciente.
 - R$ 120,00 por sessão - responde o psicólogo.
 - Bem, eu vou pensar - conclui o sujeito.
 Passados seis meses, eles se encontram na rua.
 - Por que você não me procurou mais? - pergunta o psicólogo.
 - A 120 paus a consulta, três vezes por semana,  dois anos = R$ 37.440,00, ia ficar caro demais, ai um sujeito num bar me curou por 10 reais.
 - Ah é? Como? - pergunta o psicólogo.
 O sujeito responde:
 - Por R$ 10,00 ele cortou os pés da cama...
            Assim como o sujeito do bar, é comum as pessoas mais simples enxergarem melhor a solução. A crença de que um alto nível de especialização, formação acadêmica ou técnica é a garantia de maior capacidade de solução para todo tipo de problema, é um preconceito que dificilmente é percebido. Tenho um amigo que diz que chegou a uma idade que não quer aprender mais nada e sim desaprender. Eu não entendi e ele explicou. Às vezes, nossa cabeça está tão cheia de conceitos e preconceitos que dificilmente enxergamos a realidade. É preciso desaprender tudo aquilo que nos impede enxergar a chave para abrir a porta e o excesso de informação nem sempre é a solução para perceber a saída.
            Sempre que aceitamos ou rejeitamos uma idéia, a grande maioria das vezes, fazemos isso pelo sentimento de familiaridade ou estranheza que essa idéia nos causa. Antes de um julgamento racional, há um julgamento emocional sobre a idéia. Este julgamento emocional sabotará o julgamento racional, que não é imparcial como queremos acreditar que seja. Ou seja, a primeira reação diante de uma idéia estranha é repudiá-la, não importa o quanto ela seja racional ou plausível, ela é repudiada simplesmente porque parece nova e inusitada.
            Em uma sociedade voltada para os valores do consumo, que é hedonista, imediatista; vivendo dentro do paradigma materialista – reducionista; no ambiente enlouquecedor das nossas cidades que só nos permitem preocupar-nos com questões imediatas relacionadas com a própria sobrevivência física; nesta sociedade, a cada dia perde espaço em nossas mentes a construção de valores espiritualistas. Não é então espantoso que uma pessoa que vive imersa nessa realidade, observe com muita estranheza qualquer idéia como a vida após a morte. Porém o observador tende a acreditar que é a idéia que é estranha, e não percebe que este sentimento de estranheza é devido ao paradigma que foi educado e influi sobre sua percepção.
            Contam em outra piada que um grupo de amigos resolveu aprontar uma brincadeira com um bêbado da cidade. Passaram fezes de galinha no seu bigode enquanto ele dormia. Quando acordou, o homem sentia um odor estranho, saiu andando por toda a cidade e depois de algum tempo concluiu que o mundo todo fedia. Comumente, diante de idéias novas, nos comportamos como o bêbado do bigode sujo. Achamos que o problema está na idéia em si, mas na verdade, é o nosso filtro e percepção que estão contaminados pelo paradigma predominante.
            Esse impacto inicial que as idéias diferentes nos provocam, resultam no afastamento da maioria das pessoas que rapidamente concluem que o assunto é absurdo e não merece nenhuma apreciação séria. Às vezes, mesmo abundando evidencias e sinais que deveriam despertar o interesse do bom observador, este se recusa a admitir esta possibilidade. É o caso, por exemplo, de Sigmund Freud que rejeitava complemente qualquer fenômeno paranormal, mesmo tendo presenciado um fenômeno paranormal na presença de Carl Gustav Jung. Freud seguiu recusando mesmo diante da evidência. Jung seguiu seu próprio caminho e mergulhou a fundo no assunto.
         Lembra quando Pasteur falou de pequenos seres invisíveis ao olho nu que provocavam a decomposição da matéria orgânica? Ele foi sumariamente ridicularizado. Como é possível que isto exista se ninguém descobriu antes? Que idéia mais absurda acreditar que existam seres tão pequenos. Quem sabe então dizer que a Terra é redonda? Então, a experiência nos diz que o fato de uma idéia parecer incomum ou despertar a sensação de estranheza ou de absurdo, não é absolutamente uma razão para rejeitá-la.
            O conhecimento é a única maneira de nos libertarmos desses preconceitos. Quando buscamos a fundo investigar a questão, quando buscamos observar desde outro paradigma, quando somos capazes de duvidar dos nossos instrumentos e de nossa própria capacidade de análise, quando reconhecemos que somos culturalmente influenciados, então começamos a abrir nossas mentes para a construção de uma crença que não renega a razão. Para tanto é preciso desprender-se do orgulho e da vaidade intelectual que são os maiores óbices dessa busca.
       Crença ou descrença são construções culturais, independentemente de haver uma predisposição natural para crer, é fato que a sociedade globalizada e centrada nos valores de consumo favorece amplamente mais a descrença que a crença. Os meios de comunicação estão viciados neste sentido; tudo o que nos chega é através do filtro seletivo do paradigma reducionista materialista e se somos pessoas com formação acadêmica superior, este filtro atua de forma ainda mais intensa.
         Eu poderia começar este texto falando das inúmeras pesquisas que apontam para a sobrevivência disto que chamamos individualidade ou consciência depois da morte do corpo. São inúmeras evidências, fontes distintas, de diversas épocas, realizadas por pessoas crentes e descrentes, realizadas às vezes por homens de ciência. Talvez, citar todas essas fontes diminuiria a sensação de que essas coisas não são assim tão absurdas, que existe gente séria e preparada se dedicando a estes temas. Mas isso não valeria de nada, se antes não formos capazes de superar o preconceito pelo novo, de identificar as influências culturais que sofremos e de sermos capazes de duvidar do que já parece estabelecido.
A descrença é uma forma de crença. O descrente crê que nada existe. Qualquer forma de crença está emocionalmente influenciada, até porque pensamos que esta crença é criação nossa, produto exclusivo de nossa capacidade, de nossas reflexões. Então uma crença é uma afirmação de nossa capacidade, de nosso poder de discernimento, isso mexe com nosso orgulho, com nossa vaidade. Quando alguém diz que sua crença está equivocada, é como se esse alguém dissesse que tem maior capacidade de discernimento que você, é como admitir que você se enganou onde outro foi capaz de acertar. Esse é um exercício que exige muita humildade por isso grande parte dos convictos (convictos crentes ou descrentes) são, na verdade, orgulhosos, com excesso de auto-confiança, porque não reconhecem que tudo que somos levados a crer está sob influências sutis e imperceptíveis.
            A esta altura o leitor deve estar esperando alguma solução mágica que o passe da condição de descrente para crente. Quem sabe um conjunto de provas secretas que satisfaçam seu nível de exigência racional ou uma explanação exaustiva de provas irrefutáveis que fossem capazes de calar aos materialistas. Eu posso afirmar que o volume de informações disponíveis sobre este assunto é tão amplo e profundo que podem servir para fundamentar qualquer crença. Mas, já temos dito que a evidência documental ou mesmo a prova científica não é suficiente para fundamentar a crença. Existem pessoas que se recusam a acreditar como Freud, tamanho é o apego as suas convicções, seu orgulho e estranheza diante do novo. Antes temos que reconhecer as fragilidades do nosso ponto de vista, caso contrário, não importa as provas contundentes, pois estaremos sempre impermeáveis a qualquer mudança. Também é preciso esclarecer alguns pontos com relação às informações que servem para fundamentar as descrenças.
       O materialismo é um ponto de vista metafísico (conjunto de proposições relativas às características e componentes mais gerais da realidade) assim como o espiritualismo, e não a expressão da verdade absoluta como muitos acreditam. Trata-se de um sistema de crença, muitas vezes extrapolado de suas reais funções. A ciência moderna é predominantemente influenciada pelo paradigma materialista.  Vejamos o que nos diz, por exemplo, Ian G. Barbour:
“A maior parte do livro (e série de TV) de Carl Sagan, Cosmos, é dedicado a uma fascinante apresentação das descobertas da astronomia moderna – mas, nos intervalos, Sagan insere seus comentários filosóficos pessoais. Afirma que o universo é eterno, ou que sua origem é simplesmente incognoscível. Ataca, em diversos pontos, as idéias cristãs de Deus, argumentando que as proposições místicas e autoritárias ameaçam a supremacia do método científico, que, segundo ele, é “universalmente aplicável”. A Natureza (que ele grafa com inicial maiúscula, no livro) substitui Deus como objeto de veneração. Sagan expressa grande reverência pela beleza, vastidão e coesão interna do cosmos. Na série de TV, ele aparece sentado diante de um painel de instrumentos com os quais nos mostra as maravilhas do Universo. É uma nova espécie de sumo sacerdote, que não apenas revela os mistérios para nós como também nos diz como viver. Podemos agradecer a Sagan por sua habilidade pedagógica de trazer descobertas da astronomia, para um público mais amplo, e por sua grande sensibilidade ética e profunda preocupação com a paz mundial e com a preservação do meio ambiente. Mas talvez devêssemos questionar sua fé ilimitada no método científico, no qual, diz ele, precisamos confiar para ingressarmos na era da paz e da justiça.
(...) Boa parte do recente livro de Sagan O Mundo Assombrado pelos Demônios, é dedicada à refutação da pseudociência, especialmente da astrologia e dos supostos visitantes alienígenas e objetos voadores não identificados (OVINs). Vários capítulos, porém, foram feitos para atacar a religião, em geral sob suas formas populares e supersticiosas. Sagan apresenta longos relatos de crenças em demônios e bruxas dos séculos passados e em curandeiros e médiuns hoje em dia. Mas, com exceção de um breve comentário, em momento algum ele leva em consideração os trabalhos teológicos bem informados, de base universitária, que talvez sejam equivalentes intelectuais dos cientistas que ele admira. Sagan claramente vê a ciência e a religião como inimigas, e deposita sua fé e esperança na primeira. (Quando a Ciência Encontra a Religião, Cultrix, 2004).
Neste caso observamos um claro exemplo de quando a concepção materialista apropria-se da ciência para imiscuir suas idéias. Normalmente toma-se uma descoberta científica real e comprovada e dela tira-se conclusões especulativas e pessoais que servem para embasar a crença materialista. Usar a ciência para dizer que Deus não existe é uma extrapolação absurda e sem fundamento. É preciso estar atento a certas informações veiculadas na mídia, ou a opinião materialista e reducionista de determinado número de cientistas, que não estão devidamente fundamentadas, ou são distorcidas pela mídia ou que representam a opinião de um pesquisador ou de um grupo específico de cientistas, mas que não representa a opinião da ciência como um todo. Certas expressões, por exemplo, como “gene egoísta” e “gene da violência” são metáforas enganosas, porque, há uma base genética para o comportamento, mas não para comportamentos específicos, assim como há uma base genética para a linguagem e não para linguagens específicas, ou uma base genética da capacidade de raciocínio, mas não para argumentos racionais específicos.
Além destas extrapolações comuns, existe um complô ou pacto de silencio sobre as pesquisas científicas sérias que contribuem ou são compatíveis com a crença em alguma forma de espiritualidade. As pesquisas e pesquisadores que apontam nessa direção nunca são mencionados nas universidades e academias, salvo uma pequeníssima exceção. A maioria das pessoas que tem uma formação acadêmica qualquer, desconhece qualquer tipo de literatura ou trabalho sério de investigação científica sobre a espiritualidade humana ou sobre os fenômenos espiritualistas, a não ser quando estes experimentos são delineados dentro dos moldes reducionistas e servem apenas para combater qualquer idéia desta natureza.
Quem quer que se dê conta desta realidade, sem muito esforço poderá descobrir inúmeros trabalhos sérios e bem fundamentados, feitos por cientistas renomados que demonstram, por exemplo, a eficácia da prece na cura física e a sobrevivência da alma após a morte do corpo físico. Porém, como a maioria de nós somos acomodados, é mais fácil deixar-nos levar pelo paradigma predominante, este que a sociedade, os nossos ídolos com pés de barro e a nossa mídia está acostumada a apresentar. Quem quiser construir uma crença mais sólida e racionalmente embasada, terá que sair de sua zona de conforto, questionar o Status quo, buscar as informações ocultadas e legítimas que fundamentarão a edificação de sua crença e isso não é uma tarefa fácil nos dias atuais. A crença mais depurada e racional é uma construção que precisa ser desenvolvida e fortalecida tanto quanto foi desenvolvida a crença no materialismo. À medida que nos deparamos com a seriedade destes temas, e ultrapassamos o mar de superstições que existe em torno da espiritualidade, poderemos vislumbrar algo sólido e real para nossas vidas.
Não se trata simplesmente de privilegiar a crença sobre a descrença, trata-se de termos a consciência crítica de que não estamos em território neutro e que desde que nascemos somos influenciados por valores materialistas e essa influência aumenta com a modernidade, com o avanço do paradigma materialista em um mundo a cada dia mais urbanizado e desconectado da natureza e dos valores tradicionais. Em uma sociedade em que o ter ocupa o espaço do ser, torna-se cada vez mais difícil alimentar qualquer forma de transcendentalidade. Vejo, por exemplo, que meus amigos dos países de primeiro mundo são extremamente mais impermeáveis a qualquer tipo de crença que os meus amigos dos países menos desenvolvidos.
A maioria das pessoas acredita que isso se dá pela superioridade da cultura daqueles países; que nós somos tupiniquins atrasados que acreditam em Deus e em bobagens deste tipo. Muitos de nós, inclusive aceita passivamente este raciocínio colonialista e engole esta idéia. O que acontece é que estas sociedades são consideradas de “primeiro mundo” justamente por haverem desenvolvido os valores de uma sociedade de consumo, valores que quase sempre nos cegam a qualquer forma de conhecimento espiritual. Não se dão conta que, apesar disso, existem entre eles os que acreditam em valores espirituais e estes estão entre os nomes mais respeitáveis. Além disso, os que vivem no “terceiro mundo”, não são ignorantes que acreditam em coisas espirituais. Frequentemente, tratam-se de pesquisadores com formação superior, em universidades que não deixam nada a desejar às do primeiro mundo, mas que viveram suas vidas em uma cultura menos corrompida pelos preconceitos materialistas, muitas vezes no meio da superstição, é verdade, mas a familiaridade com as coisas espirituais, o fato de não as vê como coisas absurdas, não os fazem rejeitarem a espiritualidade de maneira preconceituosa.
Mais uma vez voltamos à piada do psicólogo e do sujeito que achava que tinha alguém debaixo da sua cama. Tamanha era a especialização do psicólogo que ele jamais pensaria em simplesmente resolver o problema cortando os pés da cama. Como eu disse, quanto mais mergulhados em um paradigma, mais dificilmente enxergamos outras possibilidades, ainda que sejamos muito hábeis dentro de um determinado sistema de conhecimento, justamente por isso temos dificuldade de perceber as coisas sob outras perspectivas. As pessoas não explicam também, porque justamente nos países mais desenvolvidos, urbanizados e economicamente estáveis é que se encontram os maiores índices de depressão e suicídio. Alguma coisa se perdeu no meio do caminho e precisa ser resgatada. Temos de reconhecer o valor e as conquistas da ciência e da civilização moderna, não pretendemos voltar às cavernas, mas precisamos estar cientes das suas limitações, sobretudo no que se refere a atender e compreender os anseios humanos mais profundos.
Não foi a toa que Allan Kardec, o codificador do Espiritismo declarou o materialismo como o grande inimigo da humanidade. Em um belíssimo texto intitulado: “As cinco alternativas da humanidade” no livro Obras Póstumas, Kardec ressalta as opções metafísicas de crença que dispomos, demonstrando a solidez do Espiritismo diante das demais. O materialismo destrói a esperança no futuro, traz em si mesmo o veneno de sua própria destruição. Trata-se de uma terra inócua para os anseios humanos mais profundos, que esvazia a vida de propósito. O materialismo se disfarça de muitas maneiras, desde a militância ateísta até a indiferença, futilidade e superficialidade da nossa sociedade de consumo, mas é sempre o mesmo materialismo. Porém, a necessidade de sobrevivência e de realização de seus anseios abstratos, faz o homem perpetuar e aperfeiçoar a crença em uma vida mais ampla e rica de possibilidades. Livrando-se da ganga das superstições, de mãos dadas com a ciência e com a razão, construiremos uma nova era do espírito.