As
verdades diferentes na aparência são como inúmeras folhas que parecem
diferentes e estão na mesma árvore. Gandhi
Quando eu tinha apenas 13 anos descobri uma locadora
de livros próxima a minha casa. Eram outros tempos, a Internet ainda nem
existia, livros eram caros, eu pobre e as poucas bibliotecas possuíam
principalmente acervo técnico. Aquele “achado” era como um oásis no deserto,
algo como descobrir o Google nos dias de hoje.
De início aluguei a polêmica “A Terceira Visão” de Lobsang
Rampa e “Uma Breve História do Tempo” de Stephen Hawking. Li as duas obras com
o mesmo fascínio. Desde cedo nunca estabeleci uma fronteira entre ciência e
espiritualidade. Aquele foi o início da minha senda espiritual, mas não pude
deixar de sentir uma grande angústia ao me dar conta mais tarde que cada livro
não me aproximava de respostas definitivas, ao invés disso, surgiam novos
questionamentos nunca feitos antes. À medida que se acumulava o conhecimento
aumentava também a consciência de minha ignorância e o desconforto de saber que
por mais que eu me esforçasse, eu nunca conseguiria respostas definitivas.
Quem nunca sentiu essa sensação de impotência ao
entrar em uma grande biblioteca? Nós ocidentais geralmente iniciamos nossa
senda espiritual pela via intelectual, pela busca de respostas objetivas ou de
um sistema perfeito que responda de modo definitivo todas as grandes questões
da existência humana. Esse sistema pode ser uma religião, uma irmandade ou um
simples conjunto de crenças. É um caminho muito útil e profícuo, mas que sempre
se deparará com o paradoxo da ignorância que cresce na medida do conhecimento.
Quanto maior o país do conhecimento, mais amplas serão as fronteiras da nossa
ignorância.
O buscador espiritual chega a um limite de esgotamento
intelectual, ou melhor, frustra-se espiritualmente ao ver que a
intelectualidade não lhe preenche a alma. Não alcançando plenitude,
essa angústia é uma armadilha que lhe bloqueia a caminhada. Além disso, a espiritualidade
humana parece um campo confuso para mentes adestradas numa cultura objetivista
e materialista. A linguagem das ciências, mesmo considerando seus diversos
campos, parte de códigos comuns, sobretudo baseados em concepções lógicas e
matemáticas. Mesmo dinâmico e mutável, existe um paradigma científico dominante
que estabelece as exigências para que algo seja considerado científico em dado
momento e contexto. Quem estudou disciplinas de metodologia científica conhece
bem esses protocolos.
Ao invés disso, as manifestações da espiritualidade
humana, quando observadas na sua totalidade, parecem uma miscelânea de
conceitos não conectados, de sistemas que não dialogam entre si e que não
possuem pressupostos comuns. Cada religião parece ter seu próprio paradigma,
sua própria cosmologia, ontologia, teologia e sistema de símbolos. O buscador
espiritual depara-se com esse labirinto. São tantos segmentos, teorias,
terminologias que nos perguntamos qual é a melhor ou mais verdadeira.
Essa sensação de estar diante do caos ocorre porque nossa mente, adestrada pelo materialismo, se esforça para enquadrar tudo dentro desse paradigma, buscando objetivar o que é de natureza
subjetiva e transcendente. Diante do aparente caos, corre-se o risco de tomar posturas
extremas como negar qualquer espiritualidade por considera-las inconsistentes
ou aderir radicalmente a um único sistema de crença alimentando a ilusão pretensiosa de possuir a verdade absoluta.
Perguntas como “qual a religião verdadeira?” ou a tentativa
de adquirir uma cultura enciclopédica sobre todas as escolas espiritualistas e
religiões é apenas reflexo desse pragmatismo objetivante que foi naturalizado como
uma forma de ver o mundo. Impõem-se como um filtro condicionando o nosso olhar.
Livrar-se desse filtro é um dos grandes desafios, sobretudo para nós
ocidentais. Por isso acredito que a mais maléfica influência que o materialismo
exerce sobre nós não é simplesmente a negação do espírito, mas a imposição do seu sistema de leitura do mundo que ofusca mesmo aqueles que creem e buscam a
espiritualidade. Sem se darem conta, frequentemente as pessoas usam o paradigma materialista e não entendem porque em determinado ponto sua caminhada espiritual não vai avante.
Sistemas de crença podem ser ferramentas úteis, mas
podem tornar-se facilmente prisões que impedem a expansão da consciência. É uma
linha muito sutil. O próprio materialismo é um sistema de crença muito útil
para a dimensão prática e objetiva da vida, que pode tornar-se rapidamente
tóxico e limitante para lidar com o aspecto espiritual da existência ou com
nossa própria subjetividade. Convém ressaltar que mesmo a mais rigorosa ciência
materialista não garante verdades absolutas, trata-se apenas de um sistema de
códigos para enquadrar e descrever os fenômenos, sendo limitado para captar a
amplitude da realidade. Não se trata apenas de um ponto de vista pessoal, mas
da opinião daquele que talvez seja a figura mais importante da ciência moderna,
Albert Einstein que afirmou:
(...)
Os conceitos físicos são livres criações do espírito humano e não são, como se
poderia acreditar, determinados exclusivamente pelo mundo exterior. No esforço
que fazemos para compreender o mundo, assemelhamo-nos um pouco ao homem que
tenta entender o mecanismo de um relógio fechado. Ele vê o mostrador e os
ponteiros em movimento, ouve o tique-taque, mas não tem como abrir o estojo. Se
for engenhoso, poderá formar alguma imagem do mecanismo que ele tornará
responsável por tudo o que observa, mas nunca estará seguro de que sua imagem
seja a única capaz de explicar suas observações. Nunca estará em condições de
comparar sua imagem com o mecanismo real, e nem mesmo pode se representar a
possibilidade ou o significado de uma tal comparação”.
Números e leis científicas são apenas elucubrações
úteis, mas que não abarcam a essência das coisas. A história dá inúmeros
exemplos de que as mesmas são imprecisas e até mesmo equivocadas e se isso é
verdade para as coisas materiais é ainda muito mais para as espirituais. Muitos
espiritualistas apegam-se ingenuamente a um sistema de crenças, conceitos e
explicações como se fossem verdades absolutas ignorando que a realidade não
cabe em uma caixa. O sectarismo e o radicalismo são apenas uma fuga diante da
nossa incapacidade de compreender o incognoscível.
Estava no limite desse esgotamento intelectual,
arriscando-me nas fronteiras simplistas e arrogantes da descrença ou adesão
extrema a um sistema de crença, opções equivalentes, saídas fáceis. A senda
intelectual compara-se ao trajeto de uma mosca em direção à luz e que esbarra
em uma vidraça no meio do caminho. Ela busca com sincera vontade a luz, vai na
sua direção e não consegue enxergar e entender porquê depois de determinado
ponto não pode ir adiante. Bate virilmente contra essa barreira invisível, até
desfalecer. Foi programada para andar em uma única direção e não entende que
deve abandonar a luz, dar a volta pelo lado escuro para continuar sua caminhada.
A busca obstinada pela luz é a senda objetiva,
científica, masculina, ativa, da projeção para fora de si, da dominação do
mundo e da imposição de nossas crenças. A volta pela escuridão é o mergulho na
subjetividade, no self, no inconsciente profundo, no feminino, fecundo e
receptivo de nossas almas. O vidro é a fronteira do paradigma e o limite do
ego, necessário na evolução, mas que deve ser abandonado em determinado ponto
para seguirmos adiante. O caminho para seguir adiante é voltar para a
escuridão, para dentro de si mesmo, o quê não significa abandonar explicações
lógicas ou o conhecimento objetivo, mas passar a desenvolver um outro olhar
sobre o mundo através do mergulho no eu. Fechemos os olhos da matéria e
deixemo-nos guiar por outros sentidos.
Tudo mudou quando conheci o misterioso “Tao Te Ching”
de Lao Tse. Sua obscuridade inescrutável, sua negação absoluta da
objetividade, a total passividade e o poder do fecundo do nada, da não ação, de
fazer sem nada fazer. É uma ruptura radical e chocante com o objetivismo, uma
revolucionária e ancestral mudança de paradigma. Não era mais um sistema
alternativo, era o antissistema, o esvaziamento do desumanizante e alienante
excesso intelectual que corrói a intuição e a criatividade. Sem dúvida, uma das
maiores obras da humanidade:
CAPÍTULO
47
Sem sair da porta
Pode-se conhecer o mundo
Sem ver através da janela
Pode-se conhecer o Caminho do
céu
Quanto mais longe saímos
Tanto menos conhecemos
Por isso, o Homem Sagrado
Conhece sem caminhar
Reconhece sem ver
Realiza
sem agir
Ao trilhar o caminho da meditação e do alto
conhecimento começamos a sentir insights de uma realidade que não pode ser
expressa por ser superior e transcendente. “Aquilo que pode ser dito não é o
Tao”. Porém é possível expressar algumas pistas que apontam a direção para
alcançar essa realidade que na condição humana só pode ser sentida, mas nunca
objetificada. Essa é a função dos sistemas de crença, eles não devem ser um fim
em si mesmo, mas o meio para o fim maior que não está contido em seus códigos e
símbolos.
As grandes escolas espiritualistas apontam para essa
realidade essencial, primordial e superior da qual a vida material é apenas uma
manifestação parcial, limitada e imperfeita. Mens Agitat Molen (O espírito move a matéria) ele preexiste a tudo
e determina todas as coisas, de tal forma que todas as coisas que se veem são
feitas de coisas que não se veem. Tentar traduzi-la é como explicar a luz e as
cores a um cego de nascença.
No entanto existem mecanismos que nos conduzem as
portas da percepção dessa realidade transcendente. Cada sistema de crenças
possui suas chaves e elementos simbólicos que funcionam como uma espécie de
catalizador psíquico espiritual, desconectando-nos da realidade objetiva e estabelecendo
o contato com o espírito através da nossa subjetividade. As artes cumprem essa
função, mas as grandes escolas espiritualistas desenvolveram técnicas
meditativas e sistemas simbólicos muito avançados.
Esses símbolos podem ser representações gráficas
enigmáticas, koans, músicas, parábolas, representações propositadamente não
objetivas. Diferentemente de uma letra ou número que possui um significado
único de preciso, a linguagem simbólica é um elemento vivo que se locupleta
através da observação dinâmica de uma individualidade consciente. O seu
significado evolui na interação com o observador, na realidade ele funciona
como um espelho da nossa subjetividade alcançado dimensões ocultas da nossa
consciência. Carl Gustav Jung estudou o tema com profundidade e foi beber na
fonte do misticismo oriental para elaborar sua teoria dos arquétipos e do
inconsciente coletivo.
Nem todos os sistemas de crença oferecem um acervo
simbólico consistente e capaz de promover essa percepção. As grandes correntes
místicas e espiritualistas no geral oferecem sistemas excelentes e milenares,
mas nem tudo o que se vê nos dias de hoje é profundo, sobretudo diante da
banalização e mercantilização da espiritualidade. Porém, entre as grandes
escolas, não faz o mínimo sentido questionar qual a verdadeira, porque todas são
folhas da mesma árvore como enfatizamos através da citação de Gandhi. As muitas
verdades são um espelho imperfeito daquilo que não pode ser expresso.
Isso nos faz lembrar a famosa lenda dos cegos que
tentam descrever um elefante. Cada um toca uma parte do corpo do elefante, a
perna, o rabo, a orelha, a tromba. Depois ficam discutindo entre si sobre como
realmente é um elefante. Não chegam a um consenso, cada um acredita ter razão sobre
os demais. Todos estão parcialmente certos, são verdades aparentemente
diferentes, todas úteis, mas nenhuma fiel. Não se trata do relativismo que nega
a existência de qualquer verdade, mas sim de uma verdade transcendente e
objetivamente inacessível, como o relógio fechado de Einstein.
É certo também que conforme a nossa organização
psíquica, aptidões e bagagem espiritual teremos mais afinidade com determinado
sistema de crença. Adquiramos cultura espiritualista, é bom e útil buscar e
conhecer as opções, mas, para usufruir realmente é preciso dedicação e
aprofundamento que pode levar uma vida o quê torna-se impossível se não
escolhermos uma senda e ficarmos apenas como abelhas curiosas que querem
possuir todas as flores do jardim, reflexo da ansiedade e utilitarismo de uma
sociedade materialista.
Espero que estas palavras ajudem na busca de novos
insights, ao invés de permanecermos como moscas batendo contra o vidro. Que
possamos encontrar o caminho de volta para nós mesmos.