O desconhecido causa
medo e fascínio. A criança quando toma consciência do mundo é a expressão mais
pura desses sentimentos. Por milhares de anos nos confrontamos com grandes
mistérios que alimentaram-nos a curiosidade, o desejo pela descoberta, a
vontade de ir além e desvelar o que estava oculto. Esse impulso nos conduziu
desde as migrações dos povos primitivos, passando pelas navegações e chegando a
era espacial, foi o que nos levou a criar a ciência e a religião, pois ambas,
de modo diferente, são movidas pelo encanto diante do mistério.
Hoje é difícil imaginar
que na maior parte da história da humanidade não tínhamos explicações para o
que estava debaixo dos nossos pés ou acima das nossas cabeças. Não tínhamos os
conhecimentos mais simples sobre os fenômenos da natureza, do universo, da
matéria. Continentes não haviam sido descobertos, animais e plantas nunca
tinham sido vistos, e existiam povos e civilizações que desconheciam a
existência uns dos outros. O encontro com o desconhecido talvez seja uma das
maiores e mais transformadoras experiências humanas. Acredito que o encontro
dos grandes navegadores com terras e povos para eles desconhecidos, impulsionou
o próprio Iluminismo e a Revolução Industrial.
Fico imaginando a
sensação desses navegadores ao lançar-se ao mar, com sistemas de navegação
precários e informações que misturavam fatos e lendas de monstros marinhos e
depois de uma jornada apavorante rumo ao desconhecido, a perplexidade de encontrar
um novo continente com seres humanos completamente diferentes. As descrições do
novo mundo tomaram conta do imaginário europeu, inspirando artistas,
escritores, aventureiros e cientistas a descobrirem o paraíso perdido do além
mar. Façamos um esforço, só por um momento, em imaginar essa sensação de se
lançar ao desconhecido com intrepidez e o poder que o encontro com o
desconhecido tem para impulsionar as realizações humanas.
O mundo atual está em
desencanto porque estamos repletos de conhecimento e explicações sobre todas as
coisas. Não há mais espaço para o misterioso e o desconhecido. Isso não
significa que a humanidade alcançou todas as respostas e que não existam mais
mistérios, estamos longe disso, porém, o desconhecido está mais inacessível do
que nunca. Antigamente, bastava olhar para o céu ou para o horizonte e ele
estava diante dos olhos de qualquer pessoa comum, hoje o mundo está tão repleto
de informações sobre todas as coisas que dificilmente o homem comum consegue se
dar conta do insondável. Todas as pessoas parecem cheias de certezas e de
respostas definitivas, os livros parecem sagrados, a Internet responde a tudo
com um click e a ciência parece ter resolvido todos os problemas.
Nunca a humanidade
dispôs de tantas informações. Isso parece uma consequência positiva da soma dos
nossos avanços acumulados, é o que nos permite ter carros, computadores e
ressonância magnética, por outro lado, desde crianças somos estimulados com uma
imensa essa quantidade de informações sobre todas as coisas e para a maioria de
nós, aquela sensação de medo e fascínio só ocorrerá em um único momento em
nossas vidas que é a infância, para em seguida sermos preenchidos por uma série
de explicações prontas que roubam o impulso pela descoberta, a curiosidade
aventureira e o desejo de desvendar o misterioso.
Uma pequena parcela da
humanidade que alcança o cume do discernimento crítico e da excelência em algum
campo de conhecimento como a ciência, se dá conta que o mundo ainda é repleto
de mistérios e que por detrás desse mar de explicações existe um oceano
infinito de ignorância e presunção. Infelizmente, a maior parte desses
privilegiados ao alcançarem essa consciência, já terão se desconectado dessa
sensação de encanto e fascínio pelo mundo e mesmo entre aqueles que fazem
ciência de ponta, sondando o desconhecido, em sua maioria, fazem-no como uma
atividade burocrática e ordinária, muito distante daquela sensação dos
navegadores ou dos astronautas.
A ciência ignora muito
mais do que sabe e apesar de termos produzido um volume imenso de informações
precisas e úteis, existem muitas meias verdades, equívocos, suposições, teorias
e opiniões tomadas como verdades absolutas, isso sem falar de outros campos do
conhecimento humano como a espiritualidade, a arte, a literatura e o próprio
senso comum. Essas muitas teorias desencontradas que disputam entre si a
verdade e a razão sobre o que é o mundo e a existência, nos impede de ter
contato com o desconhecido. Em qual aventura vou lançar-me? O quê eu posso
descobrir? O quê eu posso inventar? Quais respostas eu posso realmente buscar se
todo o planeta está descoberto, se todas as invenções foram feitas e se o Google
me dá todas as respostas?
Quanto mais
conhecimento produzimos, mais o mundo parece explicado, desvendado, resolvido e
acabado e mais difícil se torna perceber que isso não é verdade. O excesso de
informações oculta o desconhecimento sobre o mundo e a existência,
consequentemente, perde-se a sensação de encanto, curiosidade e fascínio, bem
como a capacidade de enfrentar os medos para sondar o desconhecido e a perda de
sentido e de interesse por esse mundo explicado nos leva consequentemente ao
desinteresse e desencanto por si e pela própria vida. A existência se torna
apenas um conjunto de fatores previstos, uma sucessão de fatos esperados e já
conhecidos. Não há espaço para a criatividade, pois as soluções já estão
prontas. A ignorância tornou-se um pecado imperdoável o que nos obriga a
aceitar respostas prontas sem refletir sobre elas. As descobertas e novas
soluções estão restritas a uma elite intelectual.
Escolhemos o
conhecimento como o fascinante caminho para a nossa redenção, livrando-nos das
amarras da temida ignorância. Esse seria um belo caminho se não houvéssemos nos
deixado tomar pelo medo da ignorância que nos levou a presunção de havê-la
vencido. Não há como vencer a ignorância, ela é o outro lado da moeda do
conhecimento. Quanto mais conhecimento produzimos, mais a ignorância cresce,
primeiro porque novos conhecimentos são portas que se abrem, ampliando as
fronteiras do nosso desconhecimento, depois, a medida que o conhecimento se
acumula, é mais difícil para qualquer pessoa assimilá-lo, compreendê-lo e
principalmente alcançar as fronteiras do desconhecido.
O paradoxo é que apesar
de a ignorância nunca ter sido tão grande, também nunca foi tão grande a presunção
de que sabemos tudo, em outras palavras, hoje, mais do que nunca, somos
ignorantes da nossa própria ignorância. Porém, quando falo em ignorância não me
refiro a um estado de alienação avesso a qualquer conhecimento, mas sim a
consciência das fronteiras de qualquer sistema humano e do quão eles são
limitados para explicar o mundo e a nós mesmos. É a ignorância anunciada por
Sócrates (Só sei que nada sei).
A elite intelectual
mente para a humanidade ao comportar-se como se possuísse todas as respostas e
o fazem por medo de perder poder e influência caso anunciassem a própria
ignorância. Pregam que são a única vanguarda capaz de avançar sobre o
desconhecido e aos outros restam as migalhas de um mundo desencantado. Por
causa disso, muitas pessoas têm buscado um simulacro do mistério existencial, a
mentira da mentira, o que quer dizer que diante da mentira de que o mundo foi
explicado, decidiu-se acreditar em falsos mistérios na busca de sentido para a
vida.
No desespero para
resgatar o encanto e o fascínio pela existência, a porta mais fácil é a das
superstições, teorias conspiratórias e Fake News. As pessoas querem se sentir
parte de algo especial ou de uma visão de mundo que lhes devolva o mistério e o
desafio, elas não parecem conformadas com as sobras de um universo
desencantado, intuitivamente sabem que é uma perspectiva sem cor, sem sabor,
sem alma, enfim, sem vida. Para tanto, apegam-se a qualquer coisa mesmo que
seja lutar contra uma suposta conspiração global ou aderir a alguma teoria da
conspiração que só existe nas correntes das redes sociais.
É por esse motivo que
os grandes sistemas, paradigmas, visões hegemônicas explicativas do mundo têm
perdido poder. A cada dia cresce o número de pessoas que se opõem publicamente
aos grandes sistemas explicativos do mundo, contestando as ciências, as
religiões, os veículos de comunicação e mídia e as instituições educacionais
sem medo de serem taxadas de ignorantes. A ciência é substituída pela
pseudociência e a espiritualidade ampla e profunda é substituída pela autoajuda
ou por seitas New Age que, por sua vez, se apoiam em teorias pseudocientíficas.
Mesmo as comprovações mais óbvias da ciência, como a esfericidade da Terra,
para nossa perplexidade é questionada por um número crescente de pessoas que
acreditam que o mundo é plano.
Esse é o tipo de
ignorância que não queremos e que representa um risco real para a humanidade e
pode lança-la em um período obscuro. É o repúdio ao conhecimento que deveria
ser um instrumento de acesso ao mistério, mas que foi privatizado por uma elite
que apenas oferece um volume vertiginoso de explicações que nem sempre são
verdadeiras e nem resolvem os problemas essenciais da existência humana. A
ignorância autoproclamada e desenvergonhada é o grito de desespero de uma
civilização em crise, grito que aturde e confunde as elites intelectuais
enclausurada em seus castelos.