sábado, 23 de março de 2019

Um mundo em desencanto


O desconhecido causa medo e fascínio. A criança quando toma consciência do mundo é a expressão mais pura desses sentimentos. Por milhares de anos nos confrontamos com grandes mistérios que alimentaram-nos a curiosidade, o desejo pela descoberta, a vontade de ir além e desvelar o que estava oculto. Esse impulso nos conduziu desde as migrações dos povos primitivos, passando pelas navegações e chegando a era espacial, foi o que nos levou a criar a ciência e a religião, pois ambas, de modo diferente, são movidas pelo encanto diante do mistério.

Hoje é difícil imaginar que na maior parte da história da humanidade não tínhamos explicações para o que estava debaixo dos nossos pés ou acima das nossas cabeças. Não tínhamos os conhecimentos mais simples sobre os fenômenos da natureza, do universo, da matéria. Continentes não haviam sido descobertos, animais e plantas nunca tinham sido vistos, e existiam povos e civilizações que desconheciam a existência uns dos outros. O encontro com o desconhecido talvez seja uma das maiores e mais transformadoras experiências humanas. Acredito que o encontro dos grandes navegadores com terras e povos para eles desconhecidos, impulsionou o próprio Iluminismo e a Revolução Industrial.

Fico imaginando a sensação desses navegadores ao lançar-se ao mar, com sistemas de navegação precários e informações que misturavam fatos e lendas de monstros marinhos e depois de uma jornada apavorante rumo ao desconhecido, a perplexidade de encontrar um novo continente com seres humanos completamente diferentes. As descrições do novo mundo tomaram conta do imaginário europeu, inspirando artistas, escritores, aventureiros e cientistas a descobrirem o paraíso perdido do além mar. Façamos um esforço, só por um momento, em imaginar essa sensação de se lançar ao desconhecido com intrepidez e o poder que o encontro com o desconhecido tem para impulsionar as realizações humanas.

O mundo atual está em desencanto porque estamos repletos de conhecimento e explicações sobre todas as coisas. Não há mais espaço para o misterioso e o desconhecido. Isso não significa que a humanidade alcançou todas as respostas e que não existam mais mistérios, estamos longe disso, porém, o desconhecido está mais inacessível do que nunca. Antigamente, bastava olhar para o céu ou para o horizonte e ele estava diante dos olhos de qualquer pessoa comum, hoje o mundo está tão repleto de informações sobre todas as coisas que dificilmente o homem comum consegue se dar conta do insondável. Todas as pessoas parecem cheias de certezas e de respostas definitivas, os livros parecem sagrados, a Internet responde a tudo com um click e a ciência parece ter resolvido todos os problemas.

Nunca a humanidade dispôs de tantas informações. Isso parece uma consequência positiva da soma dos nossos avanços acumulados, é o que nos permite ter carros, computadores e ressonância magnética, por outro lado, desde crianças somos estimulados com uma imensa essa quantidade de informações sobre todas as coisas e para a maioria de nós, aquela sensação de medo e fascínio só ocorrerá em um único momento em nossas vidas que é a infância, para em seguida sermos preenchidos por uma série de explicações prontas que roubam o impulso pela descoberta, a curiosidade aventureira e o desejo de desvendar o misterioso.

Uma pequena parcela da humanidade que alcança o cume do discernimento crítico e da excelência em algum campo de conhecimento como a ciência, se dá conta que o mundo ainda é repleto de mistérios e que por detrás desse mar de explicações existe um oceano infinito de ignorância e presunção. Infelizmente, a maior parte desses privilegiados ao alcançarem essa consciência, já terão se desconectado dessa sensação de encanto e fascínio pelo mundo e mesmo entre aqueles que fazem ciência de ponta, sondando o desconhecido, em sua maioria, fazem-no como uma atividade burocrática e ordinária, muito distante daquela sensação dos navegadores ou dos astronautas.

A ciência ignora muito mais do que sabe e apesar de termos produzido um volume imenso de informações precisas e úteis, existem muitas meias verdades, equívocos, suposições, teorias e opiniões tomadas como verdades absolutas, isso sem falar de outros campos do conhecimento humano como a espiritualidade, a arte, a literatura e o próprio senso comum. Essas muitas teorias desencontradas que disputam entre si a verdade e a razão sobre o que é o mundo e a existência, nos impede de ter contato com o desconhecido. Em qual aventura vou lançar-me? O quê eu posso descobrir? O quê eu posso inventar? Quais respostas eu posso realmente buscar se todo o planeta está descoberto, se todas as invenções foram feitas e se o Google me dá todas as respostas?

Quanto mais conhecimento produzimos, mais o mundo parece explicado, desvendado, resolvido e acabado e mais difícil se torna perceber que isso não é verdade. O excesso de informações oculta o desconhecimento sobre o mundo e a existência, consequentemente, perde-se a sensação de encanto, curiosidade e fascínio, bem como a capacidade de enfrentar os medos para sondar o desconhecido e a perda de sentido e de interesse por esse mundo explicado nos leva consequentemente ao desinteresse e desencanto por si e pela própria vida. A existência se torna apenas um conjunto de fatores previstos, uma sucessão de fatos esperados e já conhecidos. Não há espaço para a criatividade, pois as soluções já estão prontas. A ignorância tornou-se um pecado imperdoável o que nos obriga a aceitar respostas prontas sem refletir sobre elas. As descobertas e novas soluções estão restritas a uma elite intelectual.

Escolhemos o conhecimento como o fascinante caminho para a nossa redenção, livrando-nos das amarras da temida ignorância. Esse seria um belo caminho se não houvéssemos nos deixado tomar pelo medo da ignorância que nos levou a presunção de havê-la vencido. Não há como vencer a ignorância, ela é o outro lado da moeda do conhecimento. Quanto mais conhecimento produzimos, mais a ignorância cresce, primeiro porque novos conhecimentos são portas que se abrem, ampliando as fronteiras do nosso desconhecimento, depois, a medida que o conhecimento se acumula, é mais difícil para qualquer pessoa assimilá-lo, compreendê-lo e principalmente alcançar as fronteiras do desconhecido.

O paradoxo é que apesar de a ignorância nunca ter sido tão grande, também nunca foi tão grande a presunção de que sabemos tudo, em outras palavras, hoje, mais do que nunca, somos ignorantes da nossa própria ignorância. Porém, quando falo em ignorância não me refiro a um estado de alienação avesso a qualquer conhecimento, mas sim a consciência das fronteiras de qualquer sistema humano e do quão eles são limitados para explicar o mundo e a nós mesmos. É a ignorância anunciada por Sócrates (Só sei que nada sei).

A elite intelectual mente para a humanidade ao comportar-se como se possuísse todas as respostas e o fazem por medo de perder poder e influência caso anunciassem a própria ignorância. Pregam que são a única vanguarda capaz de avançar sobre o desconhecido e aos outros restam as migalhas de um mundo desencantado. Por causa disso, muitas pessoas têm buscado um simulacro do mistério existencial, a mentira da mentira, o que quer dizer que diante da mentira de que o mundo foi explicado, decidiu-se acreditar em falsos mistérios na busca de sentido para a vida.

No desespero para resgatar o encanto e o fascínio pela existência, a porta mais fácil é a das superstições, teorias conspiratórias e Fake News. As pessoas querem se sentir parte de algo especial ou de uma visão de mundo que lhes devolva o mistério e o desafio, elas não parecem conformadas com as sobras de um universo desencantado, intuitivamente sabem que é uma perspectiva sem cor, sem sabor, sem alma, enfim, sem vida. Para tanto, apegam-se a qualquer coisa mesmo que seja lutar contra uma suposta conspiração global ou aderir a alguma teoria da conspiração que só existe nas correntes das redes sociais.

É por esse motivo que os grandes sistemas, paradigmas, visões hegemônicas explicativas do mundo têm perdido poder. A cada dia cresce o número de pessoas que se opõem publicamente aos grandes sistemas explicativos do mundo, contestando as ciências, as religiões, os veículos de comunicação e mídia e as instituições educacionais sem medo de serem taxadas de ignorantes. A ciência é substituída pela pseudociência e a espiritualidade ampla e profunda é substituída pela autoajuda ou por seitas New Age que, por sua vez, se apoiam em teorias pseudocientíficas. Mesmo as comprovações mais óbvias da ciência, como a esfericidade da Terra, para nossa perplexidade é questionada por um número crescente de pessoas que acreditam que o mundo é plano.

Esse é o tipo de ignorância que não queremos e que representa um risco real para a humanidade e pode lança-la em um período obscuro. É o repúdio ao conhecimento que deveria ser um instrumento de acesso ao mistério, mas que foi privatizado por uma elite que apenas oferece um volume vertiginoso de explicações que nem sempre são verdadeiras e nem resolvem os problemas essenciais da existência humana. A ignorância autoproclamada e desenvergonhada é o grito de desespero de uma civilização em crise, grito que aturde e confunde as elites intelectuais enclausurada em seus castelos.