Existe muita confusão quando o
tema é a progressão do Espiritismo. Baseando-se nos aspectos da ciência, Allan
Kardec estabeleceu que a doutrina possui aspecto progressivo e que seus
conhecimentos se expandem a partir das novas revelações espirituais e reflexões
em torno delas. Por um lado, existem os que acreditam que o Espiritismo está atrasado
na tarefa de progredir e que estacionou em Kardec, por outro lado existem os
que acusam seus confrades de tentar introduzir novidades estranhas e contrárias
aos princípios espíritas, comprometendo a pureza doutrinária. Enquanto os
primeiros parecem desejosos por mudanças, os segundos parecem receosos.
Alguns aspectos precisam ser
esclarecidos nessa discussão e o primeiro deles é que estamos falando do
Espiritismo codificado por Allan Kardec. Para alguns essa parece uma obviedade,
porém, esse não é o único Espiritismo que existe e, ao contrário do que se
costuma acreditar no movimento espírita, não foi Allan Kardec quem inventou a
palavra Espiritismo, sendo por isso perfeitamente possível usar a expressão “Espiritismo
kardecista”. Para aprofundar esse tema, sugiro buscar o artigo “O termo
Espiritismo Não Foi Criado por Kardec” de Hugo Lapa do ano 2013.
Esse detalhe é importante, porque
em se tratando de kardecismo, Allan Kardec será sempre referência básica e aqui
existe um paradoxo. Por mais que Kardec tenha estabelecido esse caráter
progressivo e tenha buscado despersonalizar a doutrina, qualquer ação no sentido
de estabelecer essa progressão estará tensionada pela aura de sacralidade póstuma
que geralmente é criada pelos seguidores dos grandes líderes e isso acontece
mesmo na ciência. É preciso um grande esforço e quantidade de evidências para
reconhecer qualquer limitação ou imprecisão nas ideias, por exemplo, de
Einstein, muito mais do que necessário para pôr em dúvida um cientista de nossa
época.
O remédio para esse mal é seguir
as instruções do próprio Allan Kardec que em vários momentos apontou que quando
a ciência provasse que o Espiritismo está errado em algum ponto, devemos
abandonar esse ponto e seguir a ciência. Entende-se aqui ciência como
conhecimento sistemático amplamente baseado em evidências e não simplesmente a
ciência acadêmica.
“Sistemático” é a palavra-chave,
porque Kardec estabelece um sistema para a progressão do Espiritismo chamado
Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE), ou seja, esse progresso não
se dá de forma errática e aleatória, aos ventos da criatividade excêntrica ou
do anarquismo ideológico. Assim como qualquer ciência, o Espiritismo é um campo
aberto ao pensamento e ao questionamento, mas o faz sobre suas bases, porque
sem bases, pontos de convergência, referenciais, não é possível ir adiante. É
por isso que na academia qualquer trabalho científico parte de uma boa revisão
bibliográfica onde se revê o que já se sabe sobre o tema e como e onde é
possível avançar. Isso não representa nenhuma limitação a liberdade de
pensamento, pelo contrário, faculta a qualquer um as bases necessárias para o
progresso.
O problema está em reconhecer
essas bases e distinguir os aspectos fundamentais do Espiritismo daqueles que
são periféricos. Se olharmos o exemplo da física, veremos que em grande parte ela
baseia-se na matemática. A matemática possui seus campos limítrofes de
investigação, no entanto estabeleceu leis fundamentais muito bem testadas.
Ninguém vive questionando se dois e dois são quatro. As quatro operações matemáticas
estão na base de toda a ciência que levou o homem a lua. É claro que eu posso
questionar a álgebra e a aritmética básicas, existe uma possibilidade muito
remota delas estarem erradas, mas considerando o seu status de alta
aplicabilidade e verificabilidade, seria uma perda de tempo tentar provar que
dois e dois são cinco.
A matemática e a física avançam
sobre essas bases realizando descobertas maravilhosas todos os dias, no entanto as bases seguem as mesmas. Na física foi criado um campo novo chamado mecânica quântica apenas para
estudar fenômenos antes desconhecidos e inexplicáveis pela física
clássica ou newtoniana. Aqui temos outra característica interessante da ciência,
pois uma nova descoberta ou informação não vem necessariamente invalidar a
anterior e sim expandir o conhecimento. A física newtoniana continua correta e
serve para colocar foguetes no espaço, prever eclipses e alinhamentos
planetários, mas descobriu-se que ela não é tão universal e quando se trata de
partículas subatômicas, as leis são outras.
Existe também, naturalmente,
descobertas científicas que invalidam as anteriores que eram realmente
equivocadas. Basta ver os médicos medievais que praticavam as sangrias e tantos
outros absurdos feitos em nome da ciência.
No caso do Espiritismo nos
deparamos com uma dinâmica semelhante. Existem aspectos fundamentais altamente
verificados e que representam a base do edifício doutrinário, tais como:
imortalidade da alma, comunicabilidade dos espíritos, reencarnação, lei de ação
e reação, pluralidade dos mundos habitados, progressão do livre-arbítrio (quanto
mais evoluídos, mais livres), existência de Deus e lei de progresso. Ficamos por aqui apenas para
citar aspectos fundamentais e interdependentes, isso significa que a base
filosófica do Espiritismo depende desses pilares, se retirarmos qualquer um deles, o
edifício cai.
Questionar esses aspectos é o
mesmo que questionar se dois e dois são quatro. Para os espíritas é uma discussão
superada desde a origem da doutrina e voltar a esse ponto seria uma perda de
tempo. Ao invés de tentar revogar algum desses aspectos seria melhor abandonar o Espiritismo. Não
se pode ser kardecista sem acreditar na reencarnação, mas, é possível ser
espírita ao modo anglo-saxônico, onde muitos não acreditam nesse princípio.
Outro aspecto pouco compreendido
é o zelo paradigmático que qualquer ciência tem com seus princípios. O espírito
Erasto diz no Livro dos Médiuns que é melhor negar nove verdades do que aceitar
uma mentira. Ou seja, para aceitar algo novo é preciso de muito zelo e análises
profundas para não cair no erro de assumir ideias imprecisas, superficiais e
sem verificação. Muita gente, repleta de criatividade e imaginação se sente ressentida
por não ter suas ideias prontamente aceitas e assumidas pelo movimento
espírita. Sobra excentricidade e falta profundidade.
Assim como da matemática surgiu a
física e o conhecimento foi se ramificando e se especializando a partir de suas
bases, assim como um edifício é edificado sobre seus alicerces, o Espiritismo deve expandir
seus conhecimentos e nesse sentido existe uma dívida histórica, por um lado,
por despreparo dos espíritas, por outro, por pudor religioso de profanar a
doutrina. Aquela sacralidade póstuma paira sobre qualquer ideia nova que
rapidamente é acusada, sem análise mais profunda, de anti-doutrinária, mesmo quando essa ideia não contradiz em nada os pilares fundamentais.
Se o kardecismo possui
fundamentos basilares, ele está repleto de práticas, ideias e hábitos que não
afetam em nada os seus fundamentos e que podem ser questionados sem prejuízo e
contradição. De fato, temos uma série de hábitos, condutas e procedimentos
convencionados em nosso movimento que não possuem relação com seus pilares. Por
exemplo, por convenção, não cobramos por nossos atendimentos, não utilizamos a
mediunidade em crianças (essa é uma regra recente), fazemos preces no início de
nossas reuniões, não adotamos rituais, não existe hierarquia nem sacerdotes...
poderia falar de tantos outros usos e costumes, todos respeitáveis e cada um
com sua devida justificativa, mas, nenhum deles tem qualquer relação com os
pilares fundamentais da doutrina.
Se amanhã, por exemplo, decidíssemos
explorar a mediunidade em crianças ou cobrar por nossos atendimentos – pessoalmente
discordo das duas coisas – isso não mudaria em nada aqueles princípios
fundamentais e basilares que mencionei acima, mas atentaria contra os usos e
costumes eticamente estabelecidos no movimento espírita, alguns pelo próprio
Kardec, algo que ele fez amplamente, mas é preciso e útil distinguir o que é
fundamento basilar daquilo que é convenção, mesmo que ética e moralmente
justificada.
Digo isso porque, mesmo que alguns usos e costumes estejam bem justificados, outros tantos são questionados na atualidade. A Federação Espírita Brasileira precisou, por decisão da justiça, inserir uma nota explicativa nas obras de Allan Kardec para explicar o contexto histórico onde determinadas falas do autor seriam consideradas extremamente racistas atualmente. A divisão de papéis entre homens e mulheres é outro tema polêmico que está em O Livro dos Espíritos.
Outros aspectos são opiniões, interpretações e reflexões dos espíritos e de Kardec de natureza secundária, que podem ser retificados e explicados em obras mais recentes, por exemplo, algumas passagens de A Gênese já não guardam mais tanta precisão científica ao explicar o cosmos, mas, nada disso afeta os fundamentos basilares e estabelecer um novo entendimento sobre esses temas em nada afeta ou estremece as bases do Espiritismo. Não importa se não existe vida em Marte ou em Júpiter, ou se justifico que essa vida é de natureza espiritual, isso não afeta o princípio da pluralidade dos mundos habitados.
Como em qualquer ciência o
Espiritismo possui seu núcleo rígido formado por aqueles fundamentos basilares
em torno do qual pairam uma constelação de ideias acessórias que estão no
limite do conhecimento e sofrem mudanças e adequações com o tempo e dão a flexibilidade
necessária para que a doutrina possa progredir. Kardec mencionava
constantemente que algumas propostas eram ainda provisórias e precisavam de
tempo e mais observações para se tornarem conclusivas.
Algumas dessas ideias acessórias
podem inclusive, como disse o próprio codificador, estarem equivocadas e
precisam ser corrigidas, sem pudores ou medo de desrespeitar Kardec, aliás,
adotar esses procedimentos é a maior homenagem que se pode fazer ao codificador.
Neste ponto abandonamos o termo “pureza doutrinária”, incompatível com qualquer
ideia de progresso, e caminhemos com a coerência doutrinária, que permite
avançar e realizar ajustes de maneira responsável e em coerência com suas
bases.